MARANHÃO: Conheça as Irmãs Carvalho, guardiãs da cultura popular maranhense

A educadora Ana Maria Carvalho costuma dizer que o projeto “Memórias de Carvalho”, que mantém atualmente com a irmã, Bel Carvalho, mira crianças “de zero a 120 anos”. O arco tão amplo deve-se a um motivo bem simples: “Brincar é algo que precisamos fazer a vida inteira”, pontua ela.

Irmãs Carvalho. Foto Alécio Cezar.

Como o próprio nome sugere, “Memórias de Carvalho” é uma iniciativa que busca compartilhar as memórias de infância das duas. “Palavras, sons, gestos e brincadeiras que nos formaram e que, hoje, podemos compartilhar”, conta Ana Maria, que, como Bel, nasceu em uma comunidade quilombola em Cururupu, no Maranhão.

Já há algum tempo radicadas em São Paulo, as duas são mestres em cultura popular.  Vale dizer que “Memórias de Carvalho”, o projeto, já tem vários desdobramentos: um álbum digital, um livreto, um espetáculo musical e um documentário, “Raízes em Flor”, no qual conversam com a mãe, D. Floriana (ou Florzinha). Em três capítulos (“A Infância”, “O Brincar”, “O Brincante como Artista”), ele pode ser visto no no YouTube.

O espetáculo ainda não passou por Minas, mas, se depender delas, é só questão de tempo. “Pretendemos circular muito pelo Brasil”, diz Ana Maria.

Escolha de repertório

disco ecoa o propósito de resgatar brincadeiras da infância e a forma como as duas vivenciaram tudo aquilo. “Não só brincadeiras de roda, como as que envolviam a construção de bonecas de pano e de milho. A gente foi fazendo esse resgate até percebermos que as músicas já eram suficientes”, comenta Bel.

Bel, aliás, reconhece um apreço especial pela faixa “Coqueiro Tão Alto”.  “Ela sempre me faz recordar de duas amigas, paraenses. A gente sempre recorria a essa brincadeira, embaixo de uma jaqueira, na casa de uma tia minha. Como nunca mais as encontrei, essa música tem essa importância particular”, explana.

Na fase de coleta de repertório, as duas também pesquisaram histórias que os pais contavam e reviviam o dia a dia da família. “Tivemos o auxílio da minha mãe, que tem 100 anos. Ela nos ajudou bastante, lembrou-se de muita coisa. No final, eram tantas brincadeiras que tivemos que escolher as que nos emocionavam mais, com as quais a gente tinha uma ligação mais próxima”, arremata Bel.

Na contramão do apagamento

Para Bel, o grande mérito do trabalho é a valorização da cultura brasileira, originária, genuína. “O brasileiro tem o hábito de copiar o que é de fora. Não estou criticando, acho que a gente precisa sim, estar informado do que acontece no mundo. Mas não podemos esquecer – e muito menos apagar – o que é nosso. Assim, difundir a cultura brasileira é manter a chama dela acesa. É colaborar para que mais pessoas a conheçam, para que ela se perpetue”.

No caso específico de “Memórias de Carvalho”, por meio do público infantil. “Se ele se engaja nesse vivenciar, essa cultura não vai morrer. Não falo só da brincadeira direcionada à criança, mas também de manifestações como o Maracatu, Bumba Meu Boi, tambor de crioula”, comenta, acrescentando que as vivências que propõem tentam atingir também o público adulto.

“E a gente vê o quanto os adultos gostam. Às vezes, o retorno pode não ser verbal, mas está na satisfação no rosto de cada um. É gratificante! A gente percebe que está no caminho certo. O que trouxemos é para compartilhar mesmo. O projeto quer mostrar às pessoas que ainda há possibilidades de brincar. E o quanto isso é importante. O brincar faz parte da nossa vivência, do nosso cotidiano. Não só para as crianças, mas para pessoas de todas as idades”, pontifica.

Infância rica em experiências

Em julho deste ano, Ana Maria completará 71 anos. Já Bel festejou, em fevereiro, 62. “Éramos 7 irmãos, cinco homens e duas mulheres. Os dois mais velhos já faleceram. Dos cinco vivos, três trabalham com cultura popular e com arte. E os outros dois, embora cantem super bem, ainda não se arriscaram”, explica Bel.

Lembrando a infância bem “moleca”, Bel narra que os dias eram pontuados não só pelas brincadeiras ditas “de menina”, como pelas que ela dividia com primos e irmãos homens. 

“Empinei papagaio, jogava pião, brincava de queimada, futebol”, lista, saudosa.
Ah, sim. Também fazia parte do cotidiano das crianças vivenciar manifestações folclóricas como a quadrilha, o tambor de crioula e o Bumba Meu Boi. “O ‘Boi’, participei mais como espectadora, porque, na época, era de fato mais voltado para os homens”.

Ana Maria, por seu turno, revela que deixou o Maranhão para ir para o Pará. Mais precisamente, rumo a Belém, com uma tia, que estava grávida. “Ela precisava de uma menina para ajudar com o bebê. Fiquei três anos cuidando do meu primo. Depois, fui para o Rio de Janeiro”.

No novo estado, sua tia, Noca, atuava como cozinheira em uma casa. Na vizinhança, havia uma mulher que estava grávida. “Olha aí, sempre a criança”, brinca Ana Maria, lembrando que a moça também precisava de alguém para ajudá-la com o bebê, só que em Manaus. “Lá fui eu de novo, ser babá. Passados dois anos, ela foi para São Paulo, e eu com ela. Só que, quando ela resolveu novamente voltar para Manaus, decidi ficar na cidade, onde já havia reencontrado meu irmão, que morava aqui e trabalhava com arte, no Teatro Ventoforte”.

Mudanças

Bel, por seu turno, saiu de Cururupu com 17 anos para estudar em São Luís, onde também começou a trabalhar. “Oportunidades que a minha cidade, por ser muito pequena, não me oferecia”. Mas não, ela não ficou muito tempo na capital. “Vim para São Paulo para conhecer minha sobrinha, então recém-nascida, e, aqui, encontrei o Grupo Cupuaçu, fundado pelos meus irmãos, Tião e Ana Maria, o qual integro até hoje”.

Logo depois, ela também conseguiu um emprego na cidade e, certo dia, se deu conta de que não tinha mais pressa em voltar para sua terra natal. “Digo que fiquei em São Paulo por dois motivos. Um, pelo  grupo (o Cupuaçu), por meio do qual, mesmo longe, mantenho conexão com meus ancestrais, com meu estado e com a minha cultura de origem. E também por vir morar aqui, no Morro do Querosene, no Butantã”.

Às explicações: “É um lugar que guarda muito da cultura nordestina. Aqui, os vizinhos sempre se cumprimentam. Essa comunidade me lembra muito a forma de viver do maranhense. Em Cururupu,  isso é muito forte, você conhece o lugar e as pessoas”.  

Berço cultural de quilate

Sim, como se deduz pela falta das duas, o fato de morarem já há tempos em São Paulo fez com que a valorização das origens fosse uma bandeira empunhada de maneira orgânica. Mesmo porque, como a própria Ana Maria Carvalho salienta, as duas tiveram um  berço cultural de potência inenarrável.

“Como falei, minha cidade é um quilombo maranhense, ou seja, um lugar culturalmente muito rico”, diz ela, ressalvando que, na infância, em momento algum se sentia pobre ou teve a percepção de uma diferença social que soasse como barreira. “Todas as crianças recebiam o mesmo cuidado, usavam as mesmas roupas, dividiam as mesmas brincadeiras. Não tinha alguém de classe social mais alta”, afiança.

Lembranças da infância

Para a prole de Dona Florzinha, tratava-se de “olhar no olho do outro o tempo todo”. Uma troca contínua. “Meu pai era mestre popular, enquanto minha avó, caixeira do Divino Espírito Santo. Então, quando eu tinha 7, 8 anos, pegava o Divino Espírito Santo e saía pedindo ‘joia’ – uma contribuição para a festa do santo. As pessoas davam dinheiro, flores, ovos, davam até o coco para ralar e fazer o bolo. Existia muita troca”, relembra Ana Maria.

O ato da doação, a beleza de juntar forças para uma causa, a comunhão, analisa ela, reverberou de tal forma na família que, hoje, está completamente entranhado na vida dos Carvalhos. “Todas essas vivências, essas experiências da minha infância, trago comigo até hoje”.

Além do todo, representado pela população do quilombo, o núcleo familiar também exalava afeto e união. “Toda noite, numa rede grande, meu pai ou meu avô contavam histórias para a gente (ela e irmãos) dormir. Quando a gente pegava no sono, colocavam cada um na respectiva cama. Essa experiência, para a gente, foi um alicerce. Todos nós trazemos essa fortaleza, que veio de nossos pais, de nossos ancestrais”, orgulha-se Ana.

Outra referência da infância das duas tem raiz na culinária. A avó era cozinheira de mão cheia, mas o estar à beira do fogão resvalava algo que transcendia o objetivo de saciar a fome. “Era algo maior. O alimento, sabe? O celebrar o alimento. Preparar junto o que a gente mesmo plantava. Então, nós plantávamos e colhíamos. Havia, por exemplo, o cuidado de não pegar fruta verde. Se ainda não estava boa, vamos esperar. Porque o tempo é importante também”, elucida Ana Maria.

Minas no coração

Ana Maria confessa que veio poucas vezes a Minas Gerais, mas, dessas experiências, ficou o apreço pelo frango com quiabo. “E gosto muito das Congadas”. Bel relata que a  primeira cidade que conheceu foi Cruzília. E também Altinópolis, “uma cidade pequena, mas bem cultural”. “Eu fui para o Encontro de Terno, que é quando se reúnem para a manifestação do Reisado. Na época da Páscoa, tem o grande grupo de teatro que encena a Paixão de Cristo. 

São três dias de apresentação que movimentam a cidade toda. Muita gente vai para lá, prestigiar, pessoas de vários lugares. Lembra um pouco um estádio de futebol pequeno de tanta gente”, compara ela, antes de revelar que as duas anseiam muito por trazer o projeto “Memórias de Carvalho” ao estado.